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Rotina de domingo.



By  bomdiathams     domingo, dezembro 19, 2010     
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Me dei conta de repente de que sou uma criança.

Uma criança, com toda a síntese da palavra. Saída do maternal, fazendo estardalhaço, exigindo atenção 24 horas e sorrindo com um quê induzido de carência.

Naquele dia respirei paz, longíqua e desligada das conversas suburbanas ao redor. Fitando o horizonte agora alaranjado dos prédios, - olha, pai, que bonito, olha o avião!, disse o garoto - prestando atenção na resposta em voz cansada do pai, agoniado com o tédio de mais uma reunião em família como todas as outras, sempre os mesmos assuntos, - como vai o trabalho, e o namorado, sua filha cresceu, tem feito a barba?, criançada que não fica quieta, vê se não vai cair, desce daí menina! - pra logo depois sair correndo numa ânsia fingida de quem tem cuidado excessivo ao ver a pequena caindo da motoca de brinquedo.

Olhei pra trás e existia alguma coisa ali que nos ligava muito juntos uns aos outros. O nariz, pensei. Reparei. Não era o nariz. Nem todos eram iguais. Os traços da bochecha? Não, não. Quem sabe o fulgor meio apagado dentro de cada par de olhos. Quem sabe. Ali eram todos iguais mas diferentes, éramos Silva, Ferreira, Magalhães, esses sobrenomes comuns mas que nos fazem dizer "Caramba, você é meu primo!" quando conhecemos o coleguinha na primeira série com o sobrenome igualzinho ao nosso, como será que pode? E eu nem sequer o conhecia, puxa vida, era pra gente estar na reunião de família juntos, não? Não.

Me vi de relance espelhada nuns olhos bem grandes e curiosos da mais novinha entre os Silva, Ferreira ou Magalhães. Olhos que pareciam querer engolir a paisagem, engolir os brinquedos no chão, o chão que estava sendo pisado, as mãos pequenas, engolir as mãos grandes que a seguravam, as pessoas que a olhavam, engolir a mim. Tão pequena e já tendo que suportar toda essa rotina, festa de família, assunto repetido, gente pedindo abraço, gente pedindo beijo, adulto fazendo voz de criança, fazendo careta, vendo que a careta saiu meio embasbacada e feia demais, e aí vem o choro. O choro de criança que todo mundo finge adorar, faz cara de amor, mas se é seu filho não existe nada que faça parar, só seio de mãe, e seio de mãe em meio a festa de família não pode.

Ela parou de chorar e me engoliu de novo, com interesse. Uma mãozinha um pouco maior que uma bolinha de gude, apreciou minhas tranças, sorriu só pra deixar a mostra os dentes mal nascidos, toda delicada. Aquele súbito momento doce me agarrou, me levou bem pra dentro de mim mesma e me resgatou um olhar encoberto de amor, que eu lancei cuidadosamente praquele pequeno ser, com muito cuidado mesmo, que era pra ela não chorar. Não chorou.
Mas logo foi de novo envolvida no tédio enegrecido da falta de assunto dos adultos. Pareciam querer disputar a atenção de uma criança com menos de 4 anos.

Enquanto isso eu me levantei, voltei a admirar a paisagem e a pensar em cada quadradinho de cada quarto de cada casa onde havia uma pessoa, ou quem sabe uma família, mergulhada na repetição desse domingo suburbano onde tudo o que os adultos fazem é ser adultos.


Ainda bem, ainda bem que eu ainda sou uma criança.
Porque amanhã é segunda-feira e eu vou viver.

Sobre bomdiathams

Escrevo porque não sei lidar. Por isso sou tentativa, despedida, impossibilidade que termina em tempestade. Escrevo porque não me resta alternativa se não derramar. Escrevo pra me livrar, ser um dia livre - e inconstante, como todas as minhas nuvens. (Jornalista, militante e capitã da areia.)

2 comentários:

Liz disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Liz disse...

Poderiam estar disputando tanto aquele olhar envolvente da criança por esperarem que aquele sentido infantil, também os envolvessem. E as famílias não são realmente famílias sem os comentários de "Nossa, como você cresceu!"...

Ps. Gostei do texto.