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paixão de nicotina. (ou névoa)



By  bomdiathams     quinta-feira, maio 23, 2013     
- Você tem um cigarro? Ela perguntou enquanto cobria as mãos com a blusa, já azulando de tanto frio.

Cruzei meu olhar com o dela e senti um estremecimento anormal vindo de algum lugar longínquo do corpo. Arrepiou os pêlos loiros do meu braço como se fosse o primeiro copo de tequila da noite. Estávamos os dois, sozinhos, esperando por um ônibus atrasado debaixo de prováveis -5º. Russos comemorariam o bom tempo. Eu, fumando lentamente, esperando que cada trago aquecesse pelo menos a ponta dos meus lábios,  prendendo a roupa no corpo o mais forte que podia, com as pálpebras cobertas de espinhas e a timidez impossibilitando que os olhos levantassem mais do que 15 centímetros ao norte.
Mesmo assim, ela me encarou confiante e repetiu a pergunta. "Ei, cara, você tem um cigarro?".

Caí do meu planeta alienígena e me dei conta de que ela realmente falava comigo - comigo, o cara estranho, vindo de escola pública, com protuberâncias avermelhadas permeando o rosto e aquele tom de voz aparentemente superior que o mundo detestava, o cara que esbarravam e não pediam desculpa, aliás, eu é que me desculpava quando me empurravam. Deprimido e deprimente, que ficava escrevendo num bloquinho solitário durante o intervalo ao invés de jogar futebol ou conversar com as garotas ou fazer amigos ou qualquer outra coisa que os caras normais e legais faziam. Eu, magrelo e ossudo, que encontrei na nicotina um bom motivo pra colocar as mãos pra fora do bolso e fingir que era uma boa companhia. Eu que não trocava olhares mas tinha frases feitas e ótimos enredos pra ser criados, mas que não tinha personagens nem protagonistas. Eu que ficava admirando de longe as mulheres bonitas e sonhando com o dia em que elas sem querer me encontrariam e descobririam que eu era o cara com quem gostariam de casar, transar ou ficar deitado na rua olhando as estrelas e cantando bossa nova. Eu que era espalhafatoso demais quando não queria chamar atenção e desajeitado demais pra chamar atenção de alguém. Eu que tropeçava nos cadarços desamarrados, tinha namoros imaginários e costumava perder noites de sono na frente do computador procurando o poema perfeito. Eu que tirava fotografias em preto e branco e esquecia de salvá-las antes de formatar a câmera, que entendia exatamente o contrário do que me explicavam, que misturava os horários de aula e aparecia vestido de vermelho quando era o dia do azul. Eu que pegava uma criança no colo e a fazia chorar, que derrubava o bolo da festa no dia da festa. O que chegava em casa de madrugada e esquecia a chave, que acabava dormindo debaixo da janela justamente no domingo, quando a casa inteira acorda mais tarde. Que depois entrava sorrateiro pra ninguém descobrir mais uma noite em claro, e que acabava derrubando um copo na cozinha, justo o copo de estimação da mãe. Um verdadeiro loser.

Mas a moça de cabelos castanhos escorridos e boca trêmula continuava me encarando, apertando os olhos pra enxergar meus traços contra a névoa e esperando uma resposta. Ela pediu um cigarro e engoliu meu silêncio anestésico. Abri a boca pra responder, pra dizer que nunca tinha entendido o efeito de um raio-x na pele até aquele momento, até ela atravessar minhas pupilas e enxergar todos os meus medos, minhas frustrações, meus problemas e minha vontade de ter alguém pra cuidar. Quase confirmei que anjos e céu poderiam existir, já que ali na minha frente brotavam asas saídas daquela blusa cinza e atrás dela a noite se transformava lentamente em dia, o sorriso que ela não soltou seria o suficiente pra todos os enredos de todas as histórias que eu escreveria um dia, e eu deixaria de fumar só pra poder envelhecer do lado daqueles olhos gigantescos e profundos, parecidos com uma galáxia recém-nascida. Por um milésimo de segundo não larguei a mochila e a puxei contra mim, pra acariciar as mechas que lhe caíam contra o rosto e carregá-la pra algum lugar distante dali, onde debaixo de um cobertor a gente encenaria algum filme da Kate Winslet.

Abaixei o cigarro pra falar, engasguei com a fumaça, ela riu e foi embora.

Mais uma paixão dessas que nascem em dias frios e enevoados, que fazem você desperdiçar o último trago e lembrar que seu último maço também acabou.

Sobre bomdiathams

Escrevo porque não sei lidar. Por isso sou tentativa, despedida, impossibilidade que termina em tempestade. Escrevo porque não me resta alternativa se não derramar. Escrevo pra me livrar, ser um dia livre - e inconstante, como todas as minhas nuvens. (Jornalista, militante e capitã da areia.)

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