- Você tem um cigarro? Ela perguntou enquanto cobria as mãos com a blusa, já azulando de tanto frio.
Cruzei meu olhar com o dela e senti um estremecimento anormal vindo de algum lugar longínquo do corpo. Arrepiou os pêlos loiros do meu braço como se fosse o primeiro copo de tequila da noite. Estávamos os dois, sozinhos, esperando por um ônibus atrasado debaixo de prováveis -5º. Russos comemorariam o bom tempo. Eu, fumando lentamente, esperando que cada trago aquecesse pelo menos a ponta dos meus lábios, prendendo a roupa no corpo o mais forte que podia, com as pálpebras cobertas de espinhas e a timidez impossibilitando que os olhos levantassem mais do que 15 centímetros ao norte.
Mesmo assim, ela me encarou confiante e repetiu a pergunta. "Ei, cara, você tem um cigarro?".
Caí do meu planeta alienígena e me dei conta de que ela realmente falava comigo - comigo, o cara estranho, vindo de escola pública, com protuberâncias avermelhadas permeando o rosto e aquele tom de voz aparentemente superior que o mundo detestava, o cara que esbarravam e não pediam desculpa, aliás, eu é que me desculpava quando me empurravam. Deprimido e deprimente, que ficava escrevendo num bloquinho solitário durante o intervalo ao invés de jogar futebol ou conversar com as garotas ou fazer amigos ou qualquer outra coisa que os caras normais e legais faziam. Eu, magrelo e ossudo, que encontrei na nicotina um bom motivo pra colocar as mãos pra fora do bolso e fingir que era uma boa companhia. Eu que não trocava olhares mas tinha frases feitas e ótimos enredos pra ser criados, mas que não tinha personagens nem protagonistas. Eu que ficava admirando de longe as mulheres bonitas e sonhando com o dia em que elas sem querer me encontrariam e descobririam que eu era o cara com quem gostariam de casar, transar ou ficar deitado na rua olhando as estrelas e cantando bossa nova. Eu que era espalhafatoso demais quando não queria chamar atenção e desajeitado demais pra chamar atenção de alguém. Eu que tropeçava nos cadarços desamarrados, tinha namoros imaginários e costumava perder noites de sono na frente do computador procurando o poema perfeito. Eu que tirava fotografias em preto e branco e esquecia de salvá-las antes de formatar a câmera, que entendia exatamente o contrário do que me explicavam, que misturava os horários de aula e aparecia vestido de vermelho quando era o dia do azul. Eu que pegava uma criança no colo e a fazia chorar, que derrubava o bolo da festa no dia da festa. O que chegava em casa de madrugada e esquecia a chave, que acabava dormindo debaixo da janela justamente no domingo, quando a casa inteira acorda mais tarde. Que depois entrava sorrateiro pra ninguém descobrir mais uma noite em claro, e que acabava derrubando um copo na cozinha, justo o copo de estimação da mãe. Um verdadeiro loser.
Mas a moça de cabelos castanhos escorridos e boca trêmula continuava me encarando, apertando os olhos pra enxergar meus traços contra a névoa e esperando uma resposta. Ela pediu um cigarro e engoliu meu silêncio anestésico. Abri a boca pra responder, pra dizer que nunca tinha entendido o efeito de um raio-x na pele até aquele momento, até ela atravessar minhas pupilas e enxergar todos os meus medos, minhas frustrações, meus problemas e minha vontade de ter alguém pra cuidar. Quase confirmei que anjos e céu poderiam existir, já que ali na minha frente brotavam asas saídas daquela blusa cinza e atrás dela a noite se transformava lentamente em dia, o sorriso que ela não soltou seria o suficiente pra todos os enredos de todas as histórias que eu escreveria um dia, e eu deixaria de fumar só pra poder envelhecer do lado daqueles olhos gigantescos e profundos, parecidos com uma galáxia recém-nascida. Por um milésimo de segundo não larguei a mochila e a puxei contra mim, pra acariciar as mechas que lhe caíam contra o rosto e carregá-la pra algum lugar distante dali, onde debaixo de um cobertor a gente encenaria algum filme da Kate Winslet.
Abaixei o cigarro pra falar, engasguei com a fumaça, ela riu e foi embora.
Mais uma paixão dessas que nascem em dias frios e enevoados, que fazem você desperdiçar o último trago e lembrar que seu último maço também acabou.
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